quinta-feira, 25 de março de 2010

O rosto da moça

Eu tinha na mente o rosto de uma daquelas donzelas de fábulas infantis e nas mãos aquarela e pincel. A mania era essa, pintar aquelas moça, porque como o seu rosto não me saia da cabeça, vez por outra saia no papel.

E isso era a qualquer hora do dia, tendo ao menos uma caneta, lápis ou pincel na mão e uma folha ou rodapé de papel livre lá se ia novamente o rosto da dona. Parecia-me que nunca estava suficientemente perfeito.

Nessa minha loucura de fazer uma releitura daquela face com exata perfeição espalhei telas em branco pela casa e andava munido de pincéis, aquarela, pastel e tinta óleo.
Dona Lúcia, lavadeira lá de casa reclamava toda semana de toalhas, lençóis, camisetas, calças e cuecas, já estava tudo manchado de tinta.


- Se quer brincar de pintor, use guache, dizia ela.

Tola, não podia entender que talvez não fosse eu feliz enquanto o rosto da donzela não existisse, de fato, na tela, no papel ou na borda do livro. Eu não seria feliz se ela não existisse.

sexta-feira, 19 de março de 2010

O motorista

Nos últimos anos do colegial eu ainda estudava no centro da cidade e, portanto, longe de casa. Contudo eu não era o único que tinha de enfrentar horas de espera no ponto de ônibus todos os dias para chegar ao colégio, muitos dos meus colegas também passavam por isso.

Luciana era, sem dúvida, a que mais sofria para chegar até a escola. Ela mora bem longe mesmo e a lotação que ela pegava longe de casa a deixava longe do colégio. Mas isso era apenas um detalhe levando em conta a alegria que ela tinha de estudar ali. Era tão só uma aventura diária que, por vezes, nos rendiam boas gargalhadas.
Entre uma e outra conhecemos “o motorista” de uma das linhas que ela podia pegar para ir à escola. No começo não sabíamos o nome dele e por isso ele era, ainda, apenas “O” motorista.

A principio minha amiga se encantou com ele, porque... porque... bem, ela não é muito normal. Ele tinha o tipo físico de uns trinta anos e devia ser mesmo, acho que era baixo por que isso não dava pra ter certeza, era magro, cabelo cortado no estilo militar, olhos escuros, dedos finos e aliança no dedo anelar direito. Este último item leva a crer que ele era casado, mas tudo bem, ao que parecia minha amiga não tinha ciúmes.

Todas as vezes que ela apanhava o ônibus com ele ficava contemplando a figura do sujeito pelo retrovisor. Ele tinha um jeito meio abobalhado e soltava risinhos, vez por outra, acho que ele sabia que ela estava olhando pra ele. Aborrecia-se com engarrafamentos, mas procurava relaxar com uma boa música gospel. Sim, ele louvava.

Ele era calmo, tranqüilo e procurava acomodar bem os passageiros, sobretudo na hora do almoço. A confusão começava justamente por aí: ônibus lotado não era com ele. O povo até reclamava, mas ele nem ligava, fazia o caminho dele, sonhava uma vida diferente, ser um caminhoneiro talvez. As estradas eram seu sonho, e as ruas e avenidas sua realidade.

Toda noite a família o esperava em casa, o chefe da família, e, todas as manhãs, aquela adolescente esperava no ponto de ônibus pelo homem dos seus sonhos. Às vezes ele esperava por ela também.

Um dia descobri que o nome dele era José Augusto, e consegui até uma foto dele. Era o Zé, o motorista de poucos inimigos, alguns amigos e muitas histórias de recreio de colégio.

Hoje faz mais de um ano que concluímos o ensino médio. A Luciana está fazendo cursinho por que ano passado não deu pra ela no vestibular. Arrumou um namorado e pintou a franja de do cabelo de vermelho, seus pais se separaram e ela mudou de cidade. Mas e o Zé? Eu também me perguntava assim, até pouco tempo atrás.

Eu também mudei de cidade há pouco mais de um mês. Vim pra Manaus no voo 1831 e tive a impressão de ouvir uma voz conhecida que disse assim:

- Boa noite senhores passageiros, bem-vindos ao voo 1831 com destino à Manaus, aqui quem fala é o Comandante José Augusto, mas podem me chamar de Zé.

quinta-feira, 11 de março de 2010

A tal da moedinha...

A moeda de cinco centavos esquecida na calçada em frente a padaria tivera pouca sorte, por ser pequena e fina escorregou do bolso do seu Floriano, era o troco do pão na manhã daquele dia e devido a seu baixo valor lá estava ignorada. Sua falta nem foi sentida.

Lá pela tardinha já estava um pouco mais distante de onde esteve a manhã toda. Mas o que preocupava não era bem isso e sim o bueiro a pouco menos de um metro Dalí.

A grande movimentação de pessoas pela manhã e na hora do almoço aos chutes foi levando a moeda cada vez mais perto do que poderia ser o seu “fim de circulação”, o abismo para o profundo esquecimento. Passou perto, mas ainda não havia chegado lá.

Até que um sujeito desatento passou por ali. Ele andava alheio ao mundo e com olhar fixo no seu allstar preto, de cadarço branco e cano alto. Olhava também para o chão, e o seu olhar baixo avistou na calçada aquela moeda.

E pra quem acha que ele deixou ela por lá mesmo só por que tinha pouco valo se engana. Um velho ditado diz que achar um dinheiro e sinal de sorte para o dia inteiro. Isso é o que vale. Daí a frente a moeda voltou a circulação, ela se junto a outra moedinhas para ser trocada por um sorvete.

Se foi perdida de novo? Quem sabe...

A velhinha da lotação.

Quando eu e meu irmão estudávamos no centro da cidade de manhã cedo já estávamos no ônibus. Era um desses que demora pra aparecer e só passa lotado, contudo pra nós que morávamos longe era a única opção cabível, qualquer outra exigia disposição para quarteirões de caminhada.
Nos ônibus, principalmente os lotados, sempre tem aquelas figuram que tornam a viagem mais emocionante. Certo dia, quis o acaso que meu irmão cruzasse com uma destas.
A figura em questão era uma senhora já de idade avançada e bem desgastada pelos longos anos já vividos. Por uma coincidência seus netos estudavam no mesmo colégio que nós e a viagem tanto pra eles quanto pra a avó era longa.

Deu-se o caso que justamente nesse dia, por uma distração, meu irmão ocupou um daqueles assentos preferenciais que ficam antes da catraca do cobrador. Daí a senhora apareceu, acompanhada de seus netos. Meu irmão já estava para lhe oferecer o lugar, mas, antes que tivesse tempo pra isso, aquela face sofrida da pobre velhinha já havia sido tomada por um semblante de ódio quase demoníaco.

- Você paga passagem?
- Sim, disse meu irmão.
- Então saia daí.

E ao mesmo tempo que dizia isso já estava empurrando o menino de lá, ao passo que a surpresa já havia tomado conta de todas.

- Jovem saudável tem mais é que ficar em pé, exclamava ela.

O que um reumatismo não faz, né?