domingo, 16 de maio de 2010

“Lembranças de um principezinho.”

Nesses vinte anos de magistérios eu já me deparei com histórias que realmente mexeram comigo, mas acho que nenhuma outra mexeu tanto quanto a do Zezé. Era um menino de uma vida muito sofrida, morava com a avó, pois a mãe havia fugido de casa e o pai entregou-se a bebida.

A avó não tinha condições de sustentar a si e ao neto apenas com o dinheiro da aposentadoria, as necessidades eram muitas e o menino tinha que trabalhar pra ajudar na renda. Ele trabalhava numa feirinha que tinha perto da escola, de manhã cedo já estava lá. Sempre cruzava com ele no caminho até o colégio.

À tarde, Zezinho estava na escola, era um menino esforçado em tudo que fazia, o esforço, a dedicação e a dignidade eram as poucas coisas que lhe restavam na vida desafortunada que levava.

Todos os colegas gostavam muito dele, com excessão do Ricardo. Nunca entendi ao certo por que não gostava de Zezinho, simplesmente não gostava, o tratava mal e sempre que podia o expunha a situações humilhantes. Eram duas crianças, mas o sentimento de desprezo de Ricardo era o de um adulto.

Ricardo tinha muito, mas era um menino vazio. Os pais, ao que me parecia, não eram presentes, ele era criado por uma babá. Talvez por isso tivesse inveja do pouco de Zezé, que vinha carregado de muito amor e carinho.

Pra ver como a vida é mesmo cheia de surpresas, Zezé acabou sendo acometido de grave tuberculose, que pela falta de conhecimento e diagnostico foi envoluindo e atingiu um patamar extremamente grave. Ele foi definhando até o último resquicio de vida e alegria que havia nele. A partir daí todos os esforços para reaver-lhe a saúde foram inúteis. Zezinho morreu às vésperas de completar 11 anos.

Todos ficamos muito consternados, aquele rapazinho de uma vida tão difícil era pra nós uma motivação a nunca perder a esperança. Sei que ele teria ido muito longe se não fosse a maldita tuberculose.

Tão logo começaram a aparecer flores costantemente na carteira do Zezinho, que ninguém ousou ocupar após usa morte. Todos dias flores bonitas e bem vivas estavam sobre o assento. Pouco depois soubemos que Ricardo era o autor daquele gesto.

Acho que assim como nós, ele também admirava a figura daquele menino.

Agora, depois de tantos anos, não sei onde anda o Ricardo, da última vez que tive notícias soube que estava fazendo faculdade de psicologia. Talvez tenha casado, e até já seja papai. Mas de uma coisa tenho certeza, o Zezinho fará parte de nossas vidas para sempre.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Papai Noel desempregado

Pelo jeito de papai falar, vi logo que se tratava de algo muito sério. Mamãe continuou passando roupa em cima da tábua sobre a cama, preocupada. Fiquei naquela de querer perguntar e ter medo de não ser o momento certo, mas a curiosidade crescia em meu peito. Não aguentei:

- Papai, o senhor vai comprar aquele carrinho que vi na TV?

Papai respirou fundo e como escolhesse as palavras para não me desapontar, respondeu.

- Acho que Papai Noel não vem esse ano, filho.

- Porquê?

- Por que ele perdeu o emprego, respondeu mamãe.

- Papai Noel perdeu o emprego? Perguntei.

- É... é quase isso. Desconversou Papai.

- Como assim?

- O dono do Polo Norte contratou outro, disse mamãe.

- Outro Papai Noel?

- Não é o Papai Noel, disse Papai.

- Mas foi o senhor que colocou o Papai Noel nessa história!

- Papai Noel não existe, existe só um desempregado, concluiu mamãe.

- Afinal de contas, eu vou ganhar o carrinho ou não?

- Quando crescer você vai entender, disse papai encerrando a discussão.

quinta-feira, 25 de março de 2010

O rosto da moça

Eu tinha na mente o rosto de uma daquelas donzelas de fábulas infantis e nas mãos aquarela e pincel. A mania era essa, pintar aquelas moça, porque como o seu rosto não me saia da cabeça, vez por outra saia no papel.

E isso era a qualquer hora do dia, tendo ao menos uma caneta, lápis ou pincel na mão e uma folha ou rodapé de papel livre lá se ia novamente o rosto da dona. Parecia-me que nunca estava suficientemente perfeito.

Nessa minha loucura de fazer uma releitura daquela face com exata perfeição espalhei telas em branco pela casa e andava munido de pincéis, aquarela, pastel e tinta óleo.
Dona Lúcia, lavadeira lá de casa reclamava toda semana de toalhas, lençóis, camisetas, calças e cuecas, já estava tudo manchado de tinta.


- Se quer brincar de pintor, use guache, dizia ela.

Tola, não podia entender que talvez não fosse eu feliz enquanto o rosto da donzela não existisse, de fato, na tela, no papel ou na borda do livro. Eu não seria feliz se ela não existisse.

sexta-feira, 19 de março de 2010

O motorista

Nos últimos anos do colegial eu ainda estudava no centro da cidade e, portanto, longe de casa. Contudo eu não era o único que tinha de enfrentar horas de espera no ponto de ônibus todos os dias para chegar ao colégio, muitos dos meus colegas também passavam por isso.

Luciana era, sem dúvida, a que mais sofria para chegar até a escola. Ela mora bem longe mesmo e a lotação que ela pegava longe de casa a deixava longe do colégio. Mas isso era apenas um detalhe levando em conta a alegria que ela tinha de estudar ali. Era tão só uma aventura diária que, por vezes, nos rendiam boas gargalhadas.
Entre uma e outra conhecemos “o motorista” de uma das linhas que ela podia pegar para ir à escola. No começo não sabíamos o nome dele e por isso ele era, ainda, apenas “O” motorista.

A principio minha amiga se encantou com ele, porque... porque... bem, ela não é muito normal. Ele tinha o tipo físico de uns trinta anos e devia ser mesmo, acho que era baixo por que isso não dava pra ter certeza, era magro, cabelo cortado no estilo militar, olhos escuros, dedos finos e aliança no dedo anelar direito. Este último item leva a crer que ele era casado, mas tudo bem, ao que parecia minha amiga não tinha ciúmes.

Todas as vezes que ela apanhava o ônibus com ele ficava contemplando a figura do sujeito pelo retrovisor. Ele tinha um jeito meio abobalhado e soltava risinhos, vez por outra, acho que ele sabia que ela estava olhando pra ele. Aborrecia-se com engarrafamentos, mas procurava relaxar com uma boa música gospel. Sim, ele louvava.

Ele era calmo, tranqüilo e procurava acomodar bem os passageiros, sobretudo na hora do almoço. A confusão começava justamente por aí: ônibus lotado não era com ele. O povo até reclamava, mas ele nem ligava, fazia o caminho dele, sonhava uma vida diferente, ser um caminhoneiro talvez. As estradas eram seu sonho, e as ruas e avenidas sua realidade.

Toda noite a família o esperava em casa, o chefe da família, e, todas as manhãs, aquela adolescente esperava no ponto de ônibus pelo homem dos seus sonhos. Às vezes ele esperava por ela também.

Um dia descobri que o nome dele era José Augusto, e consegui até uma foto dele. Era o Zé, o motorista de poucos inimigos, alguns amigos e muitas histórias de recreio de colégio.

Hoje faz mais de um ano que concluímos o ensino médio. A Luciana está fazendo cursinho por que ano passado não deu pra ela no vestibular. Arrumou um namorado e pintou a franja de do cabelo de vermelho, seus pais se separaram e ela mudou de cidade. Mas e o Zé? Eu também me perguntava assim, até pouco tempo atrás.

Eu também mudei de cidade há pouco mais de um mês. Vim pra Manaus no voo 1831 e tive a impressão de ouvir uma voz conhecida que disse assim:

- Boa noite senhores passageiros, bem-vindos ao voo 1831 com destino à Manaus, aqui quem fala é o Comandante José Augusto, mas podem me chamar de Zé.

quinta-feira, 11 de março de 2010

A tal da moedinha...

A moeda de cinco centavos esquecida na calçada em frente a padaria tivera pouca sorte, por ser pequena e fina escorregou do bolso do seu Floriano, era o troco do pão na manhã daquele dia e devido a seu baixo valor lá estava ignorada. Sua falta nem foi sentida.

Lá pela tardinha já estava um pouco mais distante de onde esteve a manhã toda. Mas o que preocupava não era bem isso e sim o bueiro a pouco menos de um metro Dalí.

A grande movimentação de pessoas pela manhã e na hora do almoço aos chutes foi levando a moeda cada vez mais perto do que poderia ser o seu “fim de circulação”, o abismo para o profundo esquecimento. Passou perto, mas ainda não havia chegado lá.

Até que um sujeito desatento passou por ali. Ele andava alheio ao mundo e com olhar fixo no seu allstar preto, de cadarço branco e cano alto. Olhava também para o chão, e o seu olhar baixo avistou na calçada aquela moeda.

E pra quem acha que ele deixou ela por lá mesmo só por que tinha pouco valo se engana. Um velho ditado diz que achar um dinheiro e sinal de sorte para o dia inteiro. Isso é o que vale. Daí a frente a moeda voltou a circulação, ela se junto a outra moedinhas para ser trocada por um sorvete.

Se foi perdida de novo? Quem sabe...

A velhinha da lotação.

Quando eu e meu irmão estudávamos no centro da cidade de manhã cedo já estávamos no ônibus. Era um desses que demora pra aparecer e só passa lotado, contudo pra nós que morávamos longe era a única opção cabível, qualquer outra exigia disposição para quarteirões de caminhada.
Nos ônibus, principalmente os lotados, sempre tem aquelas figuram que tornam a viagem mais emocionante. Certo dia, quis o acaso que meu irmão cruzasse com uma destas.
A figura em questão era uma senhora já de idade avançada e bem desgastada pelos longos anos já vividos. Por uma coincidência seus netos estudavam no mesmo colégio que nós e a viagem tanto pra eles quanto pra a avó era longa.

Deu-se o caso que justamente nesse dia, por uma distração, meu irmão ocupou um daqueles assentos preferenciais que ficam antes da catraca do cobrador. Daí a senhora apareceu, acompanhada de seus netos. Meu irmão já estava para lhe oferecer o lugar, mas, antes que tivesse tempo pra isso, aquela face sofrida da pobre velhinha já havia sido tomada por um semblante de ódio quase demoníaco.

- Você paga passagem?
- Sim, disse meu irmão.
- Então saia daí.

E ao mesmo tempo que dizia isso já estava empurrando o menino de lá, ao passo que a surpresa já havia tomado conta de todas.

- Jovem saudável tem mais é que ficar em pé, exclamava ela.

O que um reumatismo não faz, né?